Por Frederico Meyer
Tem surgido um debate em torno de medidas impostas pelas Administrações Públicas, principalmente municipais, com relação à exigência do que se pode chamar de passaporte vacinal/sanitário.
Em síntese, trata-se da ideia de que a entrada em determinados locais (e a permanência ali) está condicionada à apresentação do comprovante de vacinação contra a COVID-19. A discussão tem ocorrido mundo afora: nos Estados Unidos, na França, no Reino Unido, dentre outros países.
Na França, especificamente, milhares de profissionais de saúde não vacinados foram suspensos de seus trabalhos. Nos EUA, por exemplo, escolas e universidades têm exigido a vacinação completa para o retorno dos docentes e alunos às atividades presenciais. Há relatos de desligamento de professores que se recusaram a seguir a diretriz imposta.
Comumente, tem-se colocado como contraponto ao “passaporte” o direito de ir e vir (livre locomoção) e a própria liberdade individual de não se tolerar que se imponham medicamentos/tratamentos contra a vontade da pessoa. De um lado, pois, o direito coletivo à saúde; de outro, o direito de ir e vir e a inviolabilidade do indivíduo.
De fato, é inegável que não existe forma, pelo menos nos países que se queiram chamar de Estados Democráticos de Direito, de obrigar alguém a tomar a dose de uma vacina ou de um medicamento qualquer. A não ser em países absolutamente ditatoriais, é impensável que o Estado ou até mesmo agentes privados forcem alguém a tomar a vacina, detendo-o na rua ou adentrando sua casa e aplicando-lhe a dose à força.
Todavia, há bastante confusão – e criação deliberada de um embate que por vezes se apresenta falso ou incompleto – sobre o assunto. Não se trata, ao que parece, propriamente da criação de um dever. Se alguém não paga seu imposto de renda, está sujeito a ver seus bens penhorados, ou seu dinheiro sequestrado em conta; se uma pessoa não paga seu aluguel, pode ser despejado do imóvel, e os valores perseguidos judicialmente, também com constrição patrimonial cogente. Estes sim são deveres, cujo descumprimento traz sanção, à qual o inadimplente apenas se sujeita; a não observância do dever é comportamento ilícito.
Parece que o passaporte sanitário estatui um ônus[1], e não um dever/obrigação: para ir a dado museu, o indivíduo tem de estar vacinado. A consequência de não ter tomado a vacina é não poder entrar no museu. Apenas isto. A liberdade em não se vacinar permanece incólume. O livre exercício da opção de não tomar a vacina, portanto, traz como efeito o não atendimento do interesse da pessoa, que era adentrar o museu. O ônus, então, é uma faculdade para a fruição do interesse próprio. Seu descumprimento gera normalmente desvantagem econômica, e não sanção jurídica.
Com relação à liberdade de ir e vir, também parece haver alguma confusão sobre o tema. Não se pode, é claro, sob o prisma da falta de vacinação, impedir alguém de ir visitar um amigo ou parente em sua casa; ou de ir para o sítio/fazenda passar uma temporada. Mas e quanto aos ambientes de uso coletivo? A distinção é evidente.
Afinal, a casa da pessoa e o carro dela são invioláveis; mas o trem, o avião e o prédio da Prefeitura são de uso de todos. Nada melhor do que exemplos para mostrar o erro de um argumento. É possível embarcar em um avião comercial com o canivete “de estimação” no bolso? Não, a pessoa não consegue sequer adentrar a área do embarque. É possível fumar dentro da praça de alimentação de um shopping center? Evidente que não. E fumar no ônibus interestadual ou vôo, no curso da viagem? Tampouco é possível.
Vê-se, pois, que a liberdade de se fazer o que quer cede em espaços coletivos. E traz consequências para a pessoa. É um ônus zelar pela sua bagagem de mão. O descumprimento das regras da aviação civil gera o não embarque do passageiro inobservante. Não há sanção alguma, mas afeta seu interesse em viajar, negando-lhe a partida.
O STF enfrentou, ainda que tangencialmente por ora, o debate sobre o passaporte da vacina. Apenas decidiu que cabe ao Chefe do Executivo municipal editar medidas protetivas em seu território (MC na SL nº 1.482/RJ e MC na STP nº 824/RJ). No mérito, todavia, há fortes indícios que, quando o assunto for decidido pela Corte, a decisão será no sentido de ser viável a obrigatoriedade (por meio da imposição de consequências negativas àquele que opta por não se vacinar). Isto poque o pacificado no tema nº 1103 da repercussão geral consigna ser constitucional a obrigatoriedade de imunização de crianças.[2]
Assim, em sendo a saúde um direito coletivo, é constitucional exigir, para ingresso em determinados locais (de bares e restaurantes ao prédio do Tribunal de Justiça), a demonstração de que a pessoa está vacinada contra a COVID-19. Cada um tem a opção de não tomar medicamentos se assim não quiser; entretanto, não existe a opção de potencialmente contaminar todos os outros que convivam em um ambiente coletivo específico. Inexiste, logicamente, a opção de causar danos a outrem. Por isso é que a proteção da saúde coletiva, justificada pelo passaporte aqui tratado, se sobrepõe às decisões egoístas individualmente tomadas.[3]
[1] Para melhor compreensão, sugere-se a leitura do texto de Eros Roberto Grau, “Nota sobre a Distinção entre Obrigação, Dever e Ônus”, disponível na Internet.
[2] TESE: É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar
[3] A Lei Federal nº 13.979/2020, que “Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, dá boas balizas sobre o modo de agir do Estado. Há importantes precedentes judiciais sobre este diploma normativo.
Advogado. Especialista em Direito Público. Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).