Por Frederico Meyer.
Recentemente, por meio da edição de Portaria editada por órgão do Ministério da Economia (ato normativo da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do citado Ministério), passou-se a admitir a soma dos valores remuneratórios recebidos a título de proventos de aposentadoria (para servidores civis e para os militares inativos/reformados) com os valores recebidos por exercício de cargo em comissão ou de cargo eletivo (ou de cargo efetivo ou emprego público).
Tal normativo se tornou uma polêmica, amplamente noticiada pela imprensa. Na prática, por beneficiar integrantes da cúpula do governo federal, além do próprio Presidente da República (há diversos militares reformados ocupando cargos em comissão e eletivos na esfera federal), a mudança nos pagamentos foi veiculada por jornalistas e articulistas como uma forma de burla ao teto constitucional, um “jeitinho” para ganhar mais e, consequentemente, beneficiar certas pessoas.
Claro, sabe-se que o país passa há anos por aguda crise econômica e fiscal, piorada em 2020 com a eclosão da pandemia da COVID-19; qualquer criação de ato ou prolação de decisão que promova majoração remuneratória sofrerá naturais críticas em um momento de gigantesca contingência. E mais, em um horizonte curto não há expectativa de melhora; o controle da disseminação do coronavírus e a recuperação efetiva da economia só são, afinal, esperados para meados de 2022.
Entretanto, ruídos e polêmicas à parte, ainda que criticável a medida em razão do momento econômico pelo qual passa o país (o “timing” do ato e suas consequências políticas), há de se perguntar: é inconstitucional o recebimento além-teto nos moldes do previsto no normativo federal? Existe, neste sentido, mácula de injuridicidade nos dispositivos que permitem a soma dos valores acima referidos?
A resposta é negativa. Como será abordado em breve linhas adiante, o texto constitucional – balizado por recente decisão do STF – permite o pagamento de remunerações por cargos/vínculos distintos de modo a extrapolar o teto, caso somadas.
A prática no âmbito da Administração Pública brasileira era a de cortar no teto toda remuneração que extrapolasse tal quantia, ainda que o servidor tivesse dois vínculos distintos de cargos constitucionalmente acumuláveis. Muitos médicos, por exemplo, até hoje devem sofrer decote de sua remuneração naquilo que excede o teto, não obstante exerçam cargos distintos e acumuláveis licitamente (por exemplo, professor em uma Universidade pública e médico concursado). O entendimento era no sentido de ser o teto um limite constitucional absoluto, que não pode ser ultrapassado licitamente.
O STF, ao julgar dois recursos extraordinários oriundos do Mato Grosso (RE 602.043 e RE 612.975), no ano de 2017, consolidou a tese dos temas nº 377 e 384 da repercussão geral:
Nos casos autorizados constitucionalmente de acumulação de cargos, empregos e funções, a incidência do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente público.
Sob a ótica da isonomia (pessoas que exercem o mesmo labor e recebem valores distintos) e da proteção social do trabalho, além da vedação ao trabalho gratuito (caso um cargo público já esteja no teto, o outro será exercido gratuitamente pelo ocupante) prestado à Administração, o somatório das remunerações passou a ser admitido. De fato, se a acumulação de cargos é lícita e constitucionalmente prevista, impedir o recebimento dos valores pagos pelo seu exercício parece violar o caráter contraprestacional inerente à remuneração. Se as atribuições do cargo são exercidas e há compatibilidade de horários e cumulação regular, como impor o abate-teto ao ocupante dos postos?
A Portaria mencionada em linhas pretéritas vai além: ela impõe a consideração do limite constitucional (teto previsto no inciso XI do art. 37) isoladamente para cada vínculo em caso de aposentado civil ou militar inativo ocupante de cargo em comissão ou cargo eletivo – a causa da controvérsia debatida nos meios de comunicação.
Realmente, o STF não decidiu especificamente sobre este tema na tese consolidada supratranscrita. O permissivo, todavia, decorre diretamente do texto constitucional[1]: é possível, a contrário senso, receber concomitantemente proventos de aposentadoria com remuneração de cargo efetivo (se acumuláveis na atividade) e de cargos eletivos e em comissão. Corroborando o já previsto textualmente, o TCU tem recente acórdão[2], que vem sendo replicado e observado pela Administração, permitindo a consideração isolada de cada cargo para fins do teto.
É exatamente isto que passou a ser previsto, no seio da Administração Federal, pela Portaria tão debatida nos noticiários de TV e nos jornais. A polêmica, por assim dizer, não versa sobre a juridicidade dos pagamentos, porque previstos e autorizados na Constituição – e corroborados pelo TCU e em julgados esparsos do STF (não em sede se repercussão geral) –, mas sim sobre o impacto financeiro da medida e o momento de caos econômico do país.
Interessante ressaltar apenas, por fim, que a exceção trazida pela Portaria (e pela Constituição, não é demais lembrar) não se aplica às pensões[3]: o art. 5º da Portaria expressamente diz que “(…) o limite remuneratório incidirá sobre a soma da pensão com os rendimentos dos demais vínculos.” Afinal, o §10 do art. 37 só se refere a “proventos de aposentadoria”, optando, ao que parece, por um silêncio eloquente (portanto, deliberado) quanto às pensões. E, claro, tampouco se aplica aos servidores em atividade, civis e militares, ocupantes de cargo em comissão (art. 3º da Portaria).
[1] Art. 37 (…)
- 10. É vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria decorrentes do art. 40 ou dos arts. 42 e 142 com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os cargos acumuláveis na forma desta Constituição, os cargos eletivos e os cargos em comissão declarados em lei de livre nomeação e exoneração. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998) (Vide Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
[2] CONSULTA FORMULADA PELO PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO ACERCA DA APLICAÇÃO DO TETO REMUNERATÓRIO EM CASOS ESPECÍFICOS DE ACUMULAÇÃO DE PROVENTOS E REMUNERAÇÕES. CONHECIMENTO. RESPOSTA AO CONSULENTE. – No caso de percepção simultânea de proventos do Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos Federais e do Regime Geral de Previdência Social, o teto constitucional previsto no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal deve incidir sobre cada um dos proventos isoladamente; – Na hipótese de acumulação de proventos de aposentadoria com a remuneração decorrente do exercício de cargo em comissão, considera-se, para fins de incidência do teto constitucional previsto no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, cada rendimento isoladamente; – Precedentes do STF e do TCU sobre o assunto.60. (TCU, Plenário, Processo 027.477/2018-5 , Acórdão 1092/2019-Plenário, Rel. Min. Raimundo Carreiro, data da sessão 15 de maio de 2019)
(destaques acrescentados)
[3] Tese definida no tema nº 359 da repercussão geral do STF: “Ocorrida a morte do instituidor da pensão em momento posterior ao da Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional previsto no inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal incide sobre o somatório de remuneração ou provento e pensão percebida por servidor.”
Advogado. Especialista em Direito Público. Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).