Por Frederico Meyer.
Sabemos da cultura de intensa judicialização que impera no Brasil, principalmente nas últimas duas décadas e, com a possibilidade de interposição de tantos recursos e manejo de inúmeras medidas processuais, o Judiciário como um todo trabalha intensamente para dar solução (às vezes um tanto morosa) aos problemas a ele submetidos.
Se todas as searas da vida nacional sofrem de tal fenômeno, com os concursos públicos, mecanismo escolhido pelo constituinte para o ingresso de servidores efetivos na Administração, não poderia ser diferente. Há uma enorme quantidade de demandas em curso no Judiciário que tratam de aspectos relacionados ao funcionalismo estatal em todos os entes. Os assuntos são variados, todavia, são frequentes os pedidos relacionados à nomeação e posse no cargo/emprego almejado.
Com a multiplicidade de ações e o gigantismo do Judiciário brasileiro, o pior efeito que se nota nas decisões judiciais é a falta de uniformidade e a consequente insegurança jurídica que isso traz. A patente desigualdade com que se tratam situações semelhantes ou iguais é um problema gravíssimo, que traz uma sensação de injustiça àquele que se vê prejudicado pelo resultado da demanda (diverso do que outros obtiveram).
Felizmente, há, hoje, mecanismos processuais variados que contribuem para assegurar maior uniformidade nas decisões judiciais. É disso que se está aqui a tratar.
Para fazer frente ao quantitativo de ações com temas semelhantes, diversos enunciados jurisprudenciais surgiram com o passar do tempo (o mais antigo deles, a Súmula 14 do STF, datada de 1963, que foi “melhorada” com a edição da Súm. 683, em 2003). Mais recentemente, a tendência à abstrativização do controle difuso, com ferramentas como a repercussão geral do recurso extraordinário, trouxe inegável importância ao STF enquanto órgão de cúpula e responsável pela pacificação de questões e formulação de teses a serem aplicadas país afora.
Além das súmulas já existentes e das súmulas vinculantes, as decisões dos recursos extraordinários nos quais a Corte Suprema vislumbrou haver repercussão geral ganharam especial relevância. Em tais decisões fixam-se teses aplicáveis aos casos que tenha a mesma matéria jurídica, ainda que haja circunstâncias específicas do caso concreto apreciado, ou seja, a decisão no RE passa a ser um paradigma observado em todos os tribunais do país. Tal mecanismo traz balizas ao Poder Público e previsibilidade ao candidato interessado, protegendo suas expectativas e direitos.
A vantagem deste cenário é, precisamente, a diminuição das iniquidades e da insegurança que surgem do decisionismo exagerado de cada órgão judicante. Para melhor elucidação do que vem sendo dito, basta trazer exemplos de teses e paradigmas que pacificaram situações controversas nos tribunais, algumas, há décadas.
A mais relevante decisão em termos de impacto social aconteceu em 2011, no julgamento do tema nº 161 do STF que estabeleceu, basicamente, que não cabe à Administração deixar de prover cargos ofertados no certame, a não ser em situações excepcionais balizadas pelo próprio STF no acórdão paradigmático (RE 598.099/MS¹). O recado foi claro: o ente não pode brincar com as expectativas de investidura dos candidatos, que têm sua boa-fé protegida.
Também o tema nº 335 (RE 630733/DF) que consolidou a constitucionalidade da vedação em edital de remarcação de testes de aptidão física (muito comum nas carreiras policiais, por exemplo) em razão de situações pessoais do candidato, com a exceção no caso de candidata grávida ao tempo do exame (Tema nº 973 – RE 1058333/PR). Aqui protegeu-se a gravidez, ainda que de certo modo atrapalhasse o andamento do certame.
Alguns outros temas merecem especial menção. A tese de que os exames psicotécnicos têm de ter previsão na lei da carreira e no edital, e seguir critérios objetivos (isto é, passíveis de controle e debate), o que municia candidatos que participam de concursos cujos critérios sejam nebuloso, surgiu do Tema nº 338 (AI 758533).
O tema nº 376 (RE 635739/AL) pacificou a tese de que as cláusulas de barreira ou afunilamento são constitucionais, sendo viáveis fatores objetivos (pautados no mérito, em desempenho) para o prosseguimento no concurso apenas os candidatos com melhor classificação.
Relevantíssimo também o tema nº 485, que primou pela segurança jurídica e pela isonomia ao decidir que o Judiciário não pode substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, ressalvando-se o juízo de compatibilidade do conteúdo das questões com o previsto no edital do concurso. O tumulto gerado por constantes intervenções judiciais – com mudança de ordem de classificação e prejuízo a outros candidatos afetados pela decisão – fez ser bem-vinda a solução dada pelo STF a esta questão.
Outro importante entendimento foi quanto aos pedidos de indenização nos casos de posse de servidor por força de decisão judicial. Decidiu-se que o servidor não possui direito à reparação por não ter sido investido anteriormente pela Administração, salvo quando há arbitrariedade flagrante (tema nº 671, RE 724347/DF),
Por fim, o julgamento do tema 784 (RE 837311/PI) estabeleceu proteção especial aos candidatos aprovados no chamado cadastro de reservas (isto é, fora das vagas ofertadas), ao decidir que não há automático direito de nomeação, mas que tal direito surge em casos de preterição arbitrária e imotivada pela Administração, elementos a serem demonstrados em juízo pelo candidato.
São muitos os julgados relacionados a esse assunto, o que mostra a variedade e pluralidade de demandas sobre concursos públicos e a gradual consolidação de teses que trazem uniformidade e segurança aos candidatos e, é claro, ao ente que realiza o certame.
Importantíssimos assuntos, de repercussão geral já reconhecida, ainda serão decididos no mérito pelo STF, como a [im]possibilidade de dispensa imotivada de empregado de empresa pública e de sociedade de economia mista admitido por concurso público (tema nº 1022), como o reconhecimento de direito à nomeação de candidato preterido que ajuizou ação após o fim da validade do certame (tema 683), como, ainda, a responsabilidade civil do ente público por danos materiais causados em razão de cancelamento de prova por suspeita de fraude (tema nº 512) e, também, como a restrição à participação de candidato que responde a processo criminal (tema nº 22).
Enfim, os candidatos e a Administração têm se mostrado, em razão da pacificação dos entendimentos do STF, mais bem preparados para a tutela de seus direitos e expectativas. Se, por um lado, os candidatos têm se organizado (às vezes até por meio de associações) para buscar objetivos comuns, por outro lado a Administração passa a melhor conduzir os concursos e conferir mais previsibilidade às suas ações, com iniciativas louváveis, inclusive, como a de Goiás, que, com a edição da lei estadual nº 19.587/2017, consolidou na norma alguns entendimentos jurisprudenciais há muito consagrados e às vezes ignorados pelos entes públicos.
Resta acompanhar de perto o desenrolar dos próximos capítulos para buscar a tutela adequada – de maneira amigável ou contenciosa – e fazer valer os direitos das partes envolvidas nos concursos realizados do Oiapoque ao Chuí.
* Por ser Procurador do Estado, o autor encontra-se impedido de exercer a advocacia contra a Fazenda Pública do Estado de Goiás.
Advogado. Especialista em Direito Público. Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).