Por Filipe Denki e Jorge Lucas de Oliveira*
A legislação falimentar brasileira constitui ferramenta jurídica vital para o regular funcionamento da economia nacional em momentos como o atual, de crise e aprofundamento dos gargalos industriais, especialmente (I) o financiamento, que obriga o empresário brasileiro suportar a 3ª maior taxa de juros do mundo[1] e (II) o extenso retardo tecnológico, que nutre nossa dependência da produção (intelectual, inclusive) internacional de manufaturados.
Para amenizar, portanto, tais assimetrias competitivas, que ciclicamente desaguam em crises sistêmicas, temos em nosso arcabouço jurídico os institutos da Recuperação Judicial e da Falência. Esta para empresas que não mais possuem viabilidade econômica e devem ser encerradas, aquela para as situações em que se verifica uma crise de caráter reversível/conjuntural na atividade empresarial.
No presente artigo, destacar-se-á o caso da falência, para melhor compreendermos a pertinência (ou não) da exigência de regularidade fiscal (apresentação de CND) como condição para o encerramento das obrigações falimentares.
Vejamos.
Do longínquo ano de 1945, sob a regulação pelo Decreto nº 7.661, até dezembro de 2020, quando a Lei nº 11.101/2005 (LFRJ) sofreu modificações substanciais, o Norte que guiava os processos de falência era otimizar a utilização produtiva dos bens, ativos e recursos produtivos da empresa, visando solver o máximo possível das dívidas suportadas pela massa falida. Melhor dizendo, o foco era concentrado no pagamento do maior número de credores.
Nada mais coerente e justo, dentro de uma lógica de execução coletiva onde há preferências legais e uma ordem de pagamento das dívidas, afinal a lei deve reprimir e não institucionalizar calotes.
Ocorre que, com o passar do tempo, o surgimento de novas tecnologias e o advento da economia do conhecimento, a prática do empreendedorismo foi impulsionada vertiginosamente, e a figura do empresário se transformou numa peça essencial e irremovível das economias nacionais.
Colhe-se os exemplos das startups, mentorias individuais e outra série de modalidades que denotam o crescimento do setor de serviços ao redor do mundo.
Nesse sentido, embora o Brasil se encontre há pelo menos 30 anos, sob processo de desindustrialização[2], caminhando na contramão da conjuntura apresentada no parágrafo anterior, é possível inferir que a “nova” Lei de Falências trouxe um fio de esperança no que diz respeito à valorização do empreendedorismo como força vital para o giro da roda da economia.
Vejamos, nos destaques em negrito os dispositivos acrescidos na legislação:
Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a:
(…)
II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e
III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.
(…)
2º A falência é mecanismo de preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia.
Inegável, a nosso juízo, o acerto do legislador e o consequente aprimoramento do texto legal, alinhando-o com os valores da modernidade e da liberdade econômica, passando uma mensagem clara de que o processo falimentar se relaciona não só com o final/encerramento da atividade empresarial, mas, principalmente, com o seu recomeço célere.
Pois bem, levando em conta o contexto apresentado, adentremos de forma objetiva ao cerne da questão: seria razoável exigir a apresentação de Certidão Negativa de Débitos (tributários) para que o empresário falido obtenha a “quitação” de suas obrigações falimentares e possa retornar ao mercado?
Em tese, não haveria de se vislumbrar nenhuma irrazoabilidade na exigência. Afinal, não se pode contemporizar com a mentalidade de certos empresários que “se financiam” no não pagamento de tributos, ou que veem na prática da sonegação uma espécie de “legítima defesa” contra o estado.
Por outro lado, todavia, não se pode olvidar que a legislação tributária brasileira constitui verdadeiro caos normativo extremamente penoso de ser seguido por quem quer seja. Nesse sentido, é inafastável a constatação de que o passivo fiscal é, não raras as vezes, insolúvel quando da ocasião da quebra de uma empresa. Tanto o é que, as dívidas de empresas falidas são classificadas pela própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional como irrecuperáveis[3].
Ademais, o art. 114-A da LFRJ (outra novidade da lei) nos remete à inteligência de que, o encerramento da falência não depende do pagamento de todos os credores, mas sim, da realização de todo o ativo (que certamente não será suficiente para arcar com todas as dívidas).
Pergunta-se, portanto, o que fazer com uma empresa cuja massa falida não tem numerário suficiente para regularizar seu passivo fiscal? Negar-lhe a volta do empresário às atividades empresariais?
Não se pode perder de vista que o próprio estado de insolvência pressupõe a incapacidade de adimplemento da totalidade das dívidas contraídas.
Dessa forma, embora toda a estrutura normativa confira uma série de garantias (justas) ao crédito público, na prática muitas das massas falidas não terão condições de suportá-lo. E salvo hipóteses de fraudes e/ou crimes falimentares (que comportam uma discussão na esfera penal), não se pode responsabilizar a pessoa física pelo inadimplemento da pessoa jurídica, e, em última instância, negar a “ressocialização” do empresário pelo mesmo motivo.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando instado a resolver a celeuma em comento, expressou o entendimento de que a extinção das obrigações poderia se dar tanto em “maior” quanto em “menor” abrangência[4]. Na primeira hipótese quando fossem satisfeitos apenas os requisitos da Lei falimentar (sem a prova da quitação dos tributos), na segunda, quando houvesse tanto a regularidade perante o fisco quanto em relação aos dispositivos da Lei nº 11.101/05.
Na prática, o Tribunal encontrou um paliativo no sentido de que, o falido poderá obter a extinção de suas obrigações, exceto em relação ao fisco, que poderá “continuar demandando” contra a falida – o que não se vislumbra na prática.
É certo, logo, que a inscrição na dívida ativa não poderia ser simplesmente cancelada, mormente porque o encerramento da falência não consta como fator de extinção do crédito tributário. Ocorre, todavia, que com a baixa da falida no CNPJ, as execuções fiscais em curso terão que ser extintas por falta de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo (uma das partes não mais existe).
Ou seja, a dívida continuará a existir (apenas por existir), de modo que só será extinta em definitivo quando atingida pela prescrição.
Nota-se, ao teor do exposto, que a exigência de regularidade fiscal para a extinção das obrigações falido deve ser encarada com enfoque mais pragmático/utilitário, de forma que a norma jurídica tributária possa ser atualizada e definitivamente harmonizada com o sistema falimentar, à exemplo da inserção do art. 7º-A, na Lei nº 11.101/05, que instituiu o incidente de classificação do crédito público no processo de falência, sanando outro grande problema até então enfrentado pelo fisco, qual seja, do procedimento correto a ser adotado para inclusão do crédito público na falência.
*Jorge Lucas de Oliveira
Advogado e Administrador Judicial membro do Núcleo de Recuperação de Empresas do Lara Martins Advogados. Ex-integrante do Núcleo de Falência e Recuperação Judicial da Procuradoria da Fazenda Nacional em Goiás (PFN/GO).
[1] https://valorinveste.globo.com/mercados/moedas-e-juros/noticia/2022/06/15/com-selic-a-1325percent-brasil-tem-a-3a-maior-taxa-de-juro-nominal-do-mundo.ghtml
[2] https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=37591
[3] Portaria PGFN nº 6757/2022, art. 25, III, “a”.
[4] https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2015/2015-09-24_08-02_Quarta-Turma-admite-extincao-das-obrigacoes-de-falido-sem-prova-de-quitacao-de-tributos.aspx
Filipe Denki – Sócio do Lara Martins Advogados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera. Formação Executiva em Turnaround Management pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ex-Presidente da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência da OAB/GO (triênio 2019/2021). Diretor da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência do Conselho Federal da OAB (triênio 2022/2024). Diretor do Instituto Brasileiro de Direito da Empresa – IBDE. Membro dos institutos de insolvência empresarial TMA, IBAJUD, INSOL e IBR. Professor de Direito da Insolvência na Escola Superior da Advocacia – OAB/GO e na Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás. Coordenador do Curso de Formação de Administradores Judiciais da ESMEG. Árbitro da Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial e Industrial do Estado de Goiás – CAM/ACIEG e do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Árbitro e Coordenador do Núcleo de Reestruturação e Insolvência Empresarial da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada – CAMES. Membro do Comitê de M&A e Reestruturação de Empresas da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial Brasil – CAMARB. Palestrante em diversos eventos e autor de artigos e livros sobre a área de insolvência.