A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Praias deve retornar ao debate na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado nesta quarta-feira (4). Mas, nas redes sociais, desde o final da semana passada tem dividido opiniões. Ao visar a transferência dos terrenos de marinha da União para estados, municípios e particulares, o projeto ganhou a defesa daqueles que acreditam que a mudança trará uma maior segurança jurídica e menor tributação aos proprietários. No entanto, há quem aponte para o risco de as praias serem privatizadas e perderem o caráter de bem público.
O relator da PEC das Praias, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), ressalta que ocorreria apenas a transferência de titularidade dos terrenos de marinha, não das praias em si. “As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido”, disse em uma das emendas acrescentadas à proposta.
Se aprovada com a atual redação, a PEC promoveria a extinção dos terrenos de marinha — áreas situadas em uma faixa de 33 metros a partir da linha de preamar médio (LPM-1831). Essa demarcação é de 1831, calculada com base no vestígio máximo deixado na areia pela maré alta. Assim, a propriedade desses terrenos seria transferida para os ocupantes, sejam proprietários particulares, estados ou municípios.
No entanto, a aprovação da PEC das Praias também resultaria em uma perda para os cofres públicos. Segundo Morvan Meirelles Costa Junior, sócio fundador do Meirelles Costa Advogados, em 2023, a União arrecadou cerca de R$ 1,1 bilhão com as taxas de aproximadamente 564 mil imóveis registrados em terrenos de marinha.
“Os proprietários de terrenos de marinha pagam duas taxas à União: o foro e o laudêmio. O foro é uma taxa anual, pelo uso do terreno. Já o laudêmio, deve ser pago quando o terreno é vendido ou transferido”, explica Junior.
PEC vai privatizar as praias?
Atualmente, a Constituição Federal prevê que “os terrenos de marinha e seus acrescidos” são bens da União. Na proposta de emenda, tanto o autor, o ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA), quanto o relator, senador Flávio Bolsonaro, argumentam que a linha de preamar-médio de 33 metros é um critério que tem gerado insegurança jurídica, sobretudo em propriedades localizadas em áreas que sofrem com o movimento das marés.
“A União, até hoje, não demarcou a totalidade dos terrenos de marinha. Muitas casas têm propriedade particular registrada em cartório, mas foram objeto de demarcação pela União, surpreendendo os proprietários que, mesmo com toda a diligência, passaram, de uma hora outra, a não mais serem proprietários de seus imóveis.”
Apesar disso, ambientalistas afirmam que a PEC pode colocar em vulnerabilidade áreas costeiras com ecossistemas diversos — como mangues, áreas com influência de marés, restinga e dunas. “Haverá um aumento das construções e ocupações nessas áreas. Como consequência, o acesso da população às praias poderá ser dificultado ou até mesmo impedido”, diz um manifesto encabeçado pelo encabeçado pelo Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional (GT-MAR) e assinado por 40 organizações ambientais.
Para Luciana Lara, sócia do Lara Martins Advogados e Membro da Comissão Nacional de Mudanças Climáticas do Conselho Federal da OAB, mesmo que a União deixe de ser a proprietária dessa faixa de areia, continuará com o dever de preservar essas áreas. Quanto à privatização, ela descarta a possibilidade. “A fiscalização pública continuará, garantindo o caráter coletivo dos terrenos e o acesso irrestrito”, diz.
Isso não significa que não haja brechas para que algum tipo de cobrança para visitar as praias possa ocorrer. Pelo menos é isso o que avalia o advogado constitucionalista e professor da PUC-Campinas Henderson Fürst. “O parágrafo acrescido submete [o acesso] ao plano diretor do município, que poderá estabelecer o pagamento de taxas para o uso da praia — como taxa de preservação, taxa ambiental, taxa de lixo, entre outras —, bem como restringir o acesso por outros critérios”, alerta.
Decisão política e discussão polarizada
Embora a discussão seja sobre o fim da titularidade da União sobre os terrenos de marinha, também tem sido alvo de críticas a linha preamar-média. Em uma publicação na Revista Brasileira de Geomorfologia, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) apontam o fato de a demarcação de 33 metros ser datada de 1831, com base em “critérios ultrapassados” e sem considerar as mudanças naturais do litoral ao longo de quase 200 anos.
“É evidente a necessidade de atualização do conceito e da orientação normativa utilizada pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para a demarcação dos terrenos de marinha. Assim, propõe-se um aumento da faixa de além dos atuais 33 metros e acompanhamento da oscilação da linha de costa, de um local para outro e ao longo dos tempos.”
Caso houvesse essa mudança, a PEC das Praias não seria necessária. Isso porque a alteração poderia ser feita no Decreto-Lei 9760 de 1946, que estabelece a posição da linha de 1831 como o limite para o início da terra de marinha. No entanto, a escolha de uma emenda à Constituição, ao invés de alterar o decreto, também pode ser entendido como uma escolha política.
Segundo Henderson Fürst, trata-se de uma prerrogativa do Poder Legislativo escolher como fazer alterações no ordenamento jurídico, incluindo-se o tipo normativo que prefere editar. “Embora pudesse fazer a alteração do Decreto-Lei — e isso seria mais fácil, inclusive, para futuras alterações que se demonstrarem necessárias —, optou-se por uma PEC. Claro que, como ocorreu antes, a proposta pode ser objeto de análise quanto à sua constitucionalidade”, afirma.
E se até a escolha de fazer uma PEC pode ser política, a discussão sobre o assunto não deixaria de seguir pelo mesmo caminho. Morvan Meirelles Costa Junior, do Meirelles Costa Advogados, lamenta a polarização da proposta nas redes sociais. “Gerou debates alheios ao intuito primeiro da proposta: a regularização dessas áreas, especialmente em locais de ‘uso’ de diversos municípios e estados brasileiros, o que causa insegurança jurídica e potencial conflito federativo.”
Advogada. Sócia do Lara Martins Advogados. Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa (UAL). Mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2015). Especialização em andamento em Direito Ambiental (2021). Especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes (2014). Especialista em Direito Processual Civil pela Uniderp – Anhanguera LFG (2014) e especialista em Formação em Ensino à Distância pela Universidade Paulista (2018). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2012). Intercâmbio Acadêmico realizado na Universidad de Sevilla (2010).