https://www.conjur.com.br/2022-mai-05/filipe-denki-abuso-direito-plano-alternativo-credores
Artigo escrito pelo advogado e sócio do Lara Martins Advogados, Filipe Denki, gestor do Núcleo Recuperação Judicial, especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial, e publicado com exclusividade no portal Consultor Jurídico.
_Leia abaixo na íntegra.
Há pouco mais de um ano, a empresa Samarco Mineração entrou com pedido de recuperação judicial. Trata-se da terceira maior recuperação do país, com passivo estimado em R$ 50,5 bilhões de dívidas, ficando atrás apenas da Odebrecht, com passivo de R$ 98 bilhões e da Oi S/A, respectivamente.
Recentemente foi noticiado que o plano de recuperação judicial da Samarco foi rejeitado em assembleia geral de credores por não ter obtido quórum. Foi aprovada a apresentação de uma proposta alternativa dos credores, motivo pelo qual a empresa irá recorrer à Justiça para homologar seu plano.
As duas situações, apresentação de plano alternativo pelos credores e a aprovação/homologação de plano pela Justiça, merecem esclarecimentos adicionais. É uma novidade da Lei de Recuperação de Empresas e Falência, no caso da primeira, e uma alteração, no caso da segunda.
A possibilidade de apresentação de plano alternativo pelos credores foi incluída na legislação recuperacional com o advento da Lei nº14.112/20, que entrou em vigor em 23 de janeiro de 2021. Antes, o plano de recuperação judicial era apresentado tão somente pela devedora, podendo apenas ser modificada pelos credores.
O plano de recuperação é o instrumento básico da recuperação judicial, corporificando as medidas que serão adotadas pelo empresário ou sociedade empresária devedora, para o soerguimento da empresa (atividade econômica organizada, destinada à produção ou circulação de bens ou serviços) que passa por dificuldades. A viabilidade econômica da empresa será demonstrada com fundamento no plano de recuperação judicial apresentado no processo, de acordo com os ditames do artigo 53 da Lei 11.101/2005, para deliberação dos credores.
Segundo a lei recuperacional, os credores poderão apresentar plano alternativo se o devedor se encaixar em alguma dessas hipóteses, a saber: a) após a prorrogação do stay period, não conseguir colocar em votação um plano (§4-A do artigo 6º) e b) após a rejeição do plano em assembleia geral de credores, os credores votarem pela concessão de prazo de 30 dias para tanto, sendo que, nesse caso, o plano alternativo deverá ser votado em até 90 dias a contar da assembleia que deliberou pela apresentação do plano (§4º do artigo 56).
No caso da Samarco, os credores aprovaram em assembleia geral e deverão apresentar, em até 30 dias, plano alternativo que deverá conter: I – discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados; II – demonstração de sua viabilidade econômica, e III – laudo econômico-financeiro e avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.
O plano proposto pelos credores poderá prever a capitalização dos créditos, inclusive com a consequente alteração do controle da devedora, permitido o exercício do direito de retirada pelo sócio do devedor (artigo 56, §7º).
Porém, o que mais chamou a atenção na informação divulgada por diversos veículos de comunicação é o fato de que a Samarco irá recorrer à Justiça para conseguir aprovar e homologar o plano de recuperação judicial por ela apresentado.
E por que essa informação chamou a atenção? Uma tese que era utilizada em muitos casos de recuperação judicial — em que o plano de recuperação não era aprovado pelo quórum previsto em lei e a devedora recorria ao Judiciário para a obtenção desse quórum e consequentemente a aprovação e homologação do plano — era o abuso de direito do voto.
Na vigência da Lei 11.101/2005, anterior às alterações, o voto abusivo era fundamentado no artigo 187 do Código Civil quando era caracterizado por ato ilícito que excedia os limites da boa-fé, dos bons costumes ou do fim econômico ou social pretendido.
Assim, a abusividade do voto era caracterizada pela intenção de prejudicar a recuperanda, buscando a convolação em falência por motivos que violassem a compreensão trazida pelo Código Civil de abuso de direito, fosse este voto fundamentado ou não.
Ocorre que, com a reforma da lei, existe a previsão legal de que o voto seja exercido pelo credor no interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem (artigo 39, §6º).
Certamente haverá grande discussão quanto à aplicação deste artigo, uma vez que há forte indício de que um voto abusivo decisivo, da maneira que está na lei, irá extrapolar os limites da boa-fé ou da função socioeconômica conferida ao credor.
Foi exatamente isso que aconteceu no caso da Samarco, segundo o advogado que a representa, Daniel Villas Boas, “o histórico das negociações até hoje mostra que os credores financeiros querem asfixiar a empresa, para que seja obrigada a aprovar medidas que só trarão ganhos a eles, e não estão interessados na recuperação da companhia”.
Daniel acrescentou que “os credores financeiros querem lucros exorbitantes. Por isso, nenhum plano razoável é aceito. Nenhum plano será avaliado de forma razoável, a menos que consigam 100% do valor do crédito, além de juros, o que é absolutamente inviável para a Samarco”, acusando por fim os credores financeiros de exercício abusivo do direito ao voto.
Por outro lado, representantes dos credores financeiros falam em abuso dos donos da empresa, que “quiseram usar a Samarco para beneficiar os acionistas”, argumentando ainda que é de interesse dos credores que a empresa se recupere.
Resta aguardar os próximos capítulos da novela, já que, em que pesem as mudanças implementadas pela nova lei quanto ao abuso do direito de voto, deverá o Judiciário promover a conciliação da nova redação do artigo 39, §6º, da Lei nº 11.101/2005 com o artigo 187 do Código Civil e, assim, fazer a adequada aplicação conforme o caso concreto e caberá à recuperanda demonstrar que um voto abusivo com poder decisivo está eivado de ilicitude, visto que a nova redação deixa claro que não há espaço para interpretações.
Filipe Denki – Sócio do Lara Martins Advogados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera. Formação Executiva em Turnaround Management pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ex-Presidente da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência da OAB/GO (triênio 2019/2021). Diretor da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência do Conselho Federal da OAB (triênio 2022/2024). Diretor do Instituto Brasileiro de Direito da Empresa – IBDE. Membro dos institutos de insolvência empresarial TMA, IBAJUD, INSOL e IBR. Professor de Direito da Insolvência na Escola Superior da Advocacia – OAB/GO e na Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás. Coordenador do Curso de Formação de Administradores Judiciais da ESMEG. Árbitro da Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial e Industrial do Estado de Goiás – CAM/ACIEG e do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Árbitro e Coordenador do Núcleo de Reestruturação e Insolvência Empresarial da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada – CAMES. Membro do Comitê de M&A e Reestruturação de Empresas da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial Brasil – CAMARB. Palestrante em diversos eventos e autor de artigos e livros sobre a área de insolvência.