Por Filipe Denki
A Lei nº 11.101/05, promulgada em 9 de fevereiro de 2005, representa um marco fundamental na modernização do direito empresarial brasileiro, substituindo o regime da concordata previsto no Decreto-Lei nº 7.661/45. Ao completar duas décadas de vigência, a legislação demonstra sua importância na transformação do tratamento das empresas em crise econômico-financeira, alinhando o Brasil às mais modernas legislações internacionais e consolidando o princípio da preservação da empresa.
O contexto histórico que antecedeu a promulgação da LFRE foi marcado por profundas transformações econômicas e sociais. A globalização dos mercados, a velocidade das transações comerciais e a complexidade das relações empresariais evidenciaram a obsolescência do sistema da concordata. Inspirada em modelos internacionais, especialmente no Capítulo 11 do Bankruptcy Code norte-americano, a nova legislação buscou estabelecer um procedimento mais dinâmico e eficiente, equilibrando os interesses dos credores e da empresa devedora.
A nova legislação trouxe uma mudança paradigmática ao estabelecer como princípio fundamental a preservação da empresa economicamente viável. Este princípio se materializa através de diversos dispositivos que privilegiam a manutenção da atividade empresarial, reconhecendo sua função social e seu papel na economia. A teoria da empresa, desenvolvida pela doutrina italiana e incorporada ao direito brasileiro, fundamentou esta nova perspectiva, enfatizando a empresa como centro de múltiplos interesses que transcendem a figura do empresário.
Recuperação do produtor rural
O instituto da recuperação judicial, principal inovação da lei, representa uma ruptura com o modelo anterior ao estabelecer um procedimento flexível e negocial. Uma das importantes evoluções na aplicação da lei foi o reconhecimento da possibilidade de o produtor rural pessoa física requerer recuperação judicial. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema 1.016 de recursos repetitivos (REsp 1.800.032/MT), firmou importante precedente ao estabelecer que o produtor rural pessoa física pode requerer o benefício da recuperação judicial, desde que comprove o exercício de suas atividades rurais por mais de dois anos e apresente a inscrição prévia no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede.
Essa decisão paradigmática reconheceu a realidade do agronegócio brasileiro, onde muitos produtores rurais exercem atividade empresarial de forma individual, permitindo que estes possam se valer dos mecanismos de soerguimento previstos na lei quando enfrentarem crises econômico-financeiras. A jurisprudência estabeleceu ainda que a inscrição do produtor rural na Junta Comercial não precisa ter sido realizada há mais de dois anos, sendo suficiente a comprovação do exercício da atividade rural por esse período. A participação ativa dos credores através da assembleia geral e a ampla liberdade na escolha dos meios de recuperação permitiram soluções customizadas para cada caso. A jurisprudência tem sido fundamental na construção deste novo sistema, interpretando dispositivos legais de forma a maximizar as chances de recuperação das empresas viáveis.
Um dos avanços mais significativos foi a introdução do modelo de recuperação extrajudicial, permitindo negociações diretas entre devedor e credores e evitando a judicialização excessiva. Este instrumento ganhou ainda mais relevância com as alterações trazidas pela Lei 14.112/2020, que ampliou significativamente seu escopo e efetividade. Entre as principais melhorias, destacam-se a possibilidade de inclusão de créditos não vencidos no plano de recuperação extrajudicial, a suspensão de execuções durante as negociações (automatic stay) e a redução do quórum de aprovação para 50% mais um dos créditos de cada espécie.
Os dados do Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial (Obre) demonstram o sucesso dessas alterações legislativas, registrando um aumento expressivo nos pedidos de recuperação extrajudicial em 2023 e 2024. Este crescimento evidencia a maior confiança do empresariado neste instrumento como alternativa mais ágil e menos onerosa para a reestruturação de dívidas. A recuperação extrajudicial tem se mostrado particularmente eficaz para empresas que buscam uma renegociação mais célere e discreta de suas dívidas, preservando sua reputação no mercado e suas relações comerciais.
Sistema aperfeiçoado para financiadores
A reforma implementada pela Lei 14.112/2020 trouxe importantes aperfeiçoamentos ao sistema, incluindo a regulamentação do DIP Financing, estabelecendo garantias específicas para os financiadores e criando condições mais favoráveis para a injeção de recursos nas empresas em crise. A ampliação das possibilidades de recuperação extrajudicial e a otimização do processo falimentar também foram pontos cruciais desta atualização legislativa.
Apesar dos significativos avanços da Lei 11.101/05 e suas atualizações, um desafio crucial persiste: o acesso efetivo das micro e pequenas empresas ao sistema recuperacional. Embora estas representem 98% do total de empresas no Brasil, sua participação nos processos de recuperação judicial permanece surpreendentemente baixa. Dados da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) demonstram de forma contundente esta disparidade: o plano especial de recuperação judicial, criado especificamente para atender às necessidades das micro e pequenas empresas, tem sido muito pouco utilizado na prática. A pesquisa da ABJ revela que menos de 5% das recuperações judiciais deferidas utilizam o plano especial, evidenciando que este mecanismo não tem alcançado seu objetivo de facilitar o acesso das MPEs ao sistema recuperacional.
Este paradoxo evidencia uma lacuna significativa no sistema de insolvência brasileiro, pois justamente o segmento mais representativo do tecido empresarial nacional encontra dificuldades para acessar os mecanismos de reestruturação. Os estudos da ABJ apontam que, mesmo quando as MPEs conseguem acesso ao sistema recuperacional, a taxa de sucesso é significativamente menor em comparação com empresas de maior porte, sugerindo que o modelo atual, mesmo com suas adaptações, ainda não atende adequadamente às necessidades específicas deste segmento.
Procedimento para micro e pequenas empresas
A Lei 14.112/2020 buscou endereçar esta questão ao criar um procedimento especial para micro e pequenas empresas, com requisitos mais simples e custos reduzidos. Contudo, os dados mostram que estas medidas ainda não foram suficientes para democratizar o acesso ao instituto. Os principais obstáculos incluem os custos do processo, mesmo que reduzidos, a complexidade dos procedimentos, a dificuldade de acesso a assessoria técnica especializada e o limitado acesso ao financiamento durante a recuperação.
Esta realidade demanda uma reflexão profunda sobre a necessidade de desenvolver mecanismos ainda mais adequados às peculiaridades e limitações das micro e pequenas empresas. Possíveis soluções podem incluir a criação de procedimentos ultra simplificados, o estabelecimento de linhas de crédito específicas para empresas em recuperação deste porte e o desenvolvimento de programas de apoio técnico subsidiado.
No âmbito do agronegócio, a aplicação da lei tem mostrado particular relevância, especialmente considerando que o produtor rural pessoa física pode optar pelo registro a qualquer momento antes do pedido de recuperação judicial, desde que comprove o exercício da atividade pelo prazo mínimo de dois anos. Esta flexibilidade reconhece as peculiaridades da atividade rural e sua importância para a economia nacional, permitindo que os produtores rurais possam se beneficiar dos mecanismos de preservação empresarial quando necessário.
Cooperação entre jurisdições
A dimensão internacional da insolvência ganhou especial relevância com a incorporação da Lei Modelo da Uncitral, permitindo maior cooperação entre jurisdições e reconhecimento de procedimentos estrangeiros. Esta mudança alinha o Brasil às melhores práticas globais e facilita a integração com outros sistemas jurídicos.
Entretanto, diversos desafios persistem. A morosidade processual continua sendo um entrave significativo para a efetividade do instituto. A dificuldade de acesso a financiamento, apesar dos avanços do DIP Financing, ainda limita as possibilidades de recuperação de muitas empresas. A implementação do cram down brasileiro e sua harmonização com outros institutos jurídicos também geram debates constantes.
A transformação digital e as novas tecnologias têm impactado significativamente os processos de recuperação. A utilização de plataformas digitais para realização de assembleias, a implementação de sistemas de votação eletrônica e o uso de inteligência artificial na análise de créditos são inovações que têm modernizado os procedimentos, especialmente após a aceleração digital provocada pela Covid-19.
O ano de 2024 marcou um momento significativo na história da Lei 11.101/05, registrando um recorde histórico de pedidos de recuperação judicial. Segundo dados da Serasa Experian, foram contabilizados 2.273 requerimentos de recuperação judicial ao longo do ano, representando um aumento expressivo em relação aos períodos anteriores. Este crescimento significativo foi impulsionado por diversos fatores, incluindo os impactos residuais da pandemia de covid-19, a alta dos juros que perdurou até o início de 2024 e dificuldades no acesso ao crédito.
Casos complexos de recuperação judicial
Ao longo dessas duas décadas, o Brasil presenciou alguns dos maiores e mais complexos casos de recuperação judicial de sua história. O caso Americanas, que veio à tona em 2023 com a descoberta de inconsistências contábeis bilionárias, tornou-se um dos maiores processos de recuperação judicial do país, com dívidas declaradas de aproximadamente R$ 42,5 bilhões. Em 2023, também vimos a Via (Casas Bahia) buscar proteção judicial para reestruturar dívidas superiores a R$ 4,8 bilhões, evidenciando a crise no setor varejista brasileiro.
O setor de telecomunicações foi marcado pelo caso singular da Oi, que protagonizou dois processos de recuperação judicial. O primeiro, iniciado em 2016, foi à época o maior processo de reestruturação da América Latina, com dívidas de R$ 65 bilhões. Em 2023, a empresa entrou com novo pedido de recuperação judicial, demonstrando os desafios contínuos enfrentados por grandes corporações em setores altamente competitivos.
O caso Odebrecht (atual Novonor), iniciado em 2019, com dívidas de R$ 98,5 bilhões, exemplificou os impactos de crises reputacionais e de governança no setor de construção civil. Já a recuperação judicial da Samarco, iniciada em 2021, com dívidas de R$ 50 bilhões, trouxe à tona questões complexas envolvendo responsabilidade ambiental e social, especialmente após o desastre de Mariana.
Estes casos emblemáticos não apenas testaram a capacidade e os limites do sistema recuperacional brasileiro, mas também contribuíram para o desenvolvimento de novas interpretações jurisprudenciais e práticas mercadológicas. O elevado número de pedidos, conforme apontado pelos indicadores econômicos da Serasa Experian, evidenciou tanto a importância do sistema de insolvência empresarial quanto seus desafios contemporâneos, especialmente no que tange à necessidade de mecanismos mais ágeis e eficientes para o tratamento da crise.
Eficiência em prevenção de crises
Apesar do volume significativo de pedidos, os dados estatísticos demonstram um crescente índice de sucesso nas recuperações judiciais, embora ainda haja espaço para melhorias. A profissionalização dos administradores judiciais, o desenvolvimento de um mercado especializado em distressed assets e a crescente sofisticação das estruturas de financiamento têm contribuído para maior eficiência do sistema.
Olhando para o futuro, a necessidade de mecanismos mais eficientes de prevenção de crises, o desenvolvimento de instrumentos de reestruturação preventiva e a adaptação a novos modelos de negócio são desafios que demandarão atenção contínua. A experiência internacional, especialmente a Diretiva Europeia sobre Reestruturação e Insolvência, oferece importantes insights para o desenvolvimento futuro do sistema brasileiro.
Os 20 anos da Lei 11.101/05 representam não apenas a maturidade de um sistema legal, mas a consolidação de uma nova cultura empresarial no tratamento da crise. A preservação da empresa viável, a proteção do emprego e da função social da empresa deixaram de ser meros princípios para se tornarem realidade prática. O sistema continua em evolução, adaptando-se às novas realidades econômicas e sociais, mas já demonstrou sua capacidade de proporcionar soluções efetivas para a recuperação empresarial.
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Filipe Denki – Sócio do Lara Martins Advogados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera. Formação Executiva em Turnaround Management pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ex-Presidente da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência da OAB/GO (triênio 2019/2021). Diretor da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência do Conselho Federal da OAB (triênio 2022/2024). Diretor do Instituto Brasileiro de Direito da Empresa – IBDE. Membro dos institutos de insolvência empresarial TMA, IBAJUD, INSOL e IBR. Professor de Direito da Insolvência na Escola Superior da Advocacia – OAB/GO e na Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás. Coordenador do Curso de Formação de Administradores Judiciais da ESMEG. Árbitro da Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial e Industrial do Estado de Goiás – CAM/ACIEG e do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Árbitro e Coordenador do Núcleo de Reestruturação e Insolvência Empresarial da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada – CAMES. Membro do Comitê de M&A e Reestruturação de Empresas da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial Brasil – CAMARB. Palestrante em diversos eventos e autor de artigos e livros sobre a área de insolvência.