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A declaração de essencialidade de bens no campo: garantias, distorções e desafios jurídicos

 

Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum o uso da chamada “declaração de essencialidade de bens” no contexto de execuções contra produtores rurais ou em recuperações judiciais no campo. Trata-se de um instrumento por meio do qual o devedor, geralmente um produtor rural, requer ao Judiciário a declaração de que determinados bens (como máquinas agrícolas, tratores, colheitadeiras, animais, insumos, estruturas e até imóveis) são essenciais para a continuidade da atividade rural e, portanto, não se sujeitam à execução de dívidas. Com isso, busca-se afastar a penhora, arresto ou expropriação judicial desses bens, sob o argumento de que sua retirada inviabilizaria por completo o ciclo produtivo, causando danos irreparáveis não apenas ao produtor, mas à economia local e até nacional.

Essa prática, ainda que amparada em princípios constitucionais e normas legais de forma difusa, vem sendo adotada sem uma regulamentação específica, o que gera tanto resultados positivos quanto riscos relevantes. Por um lado, a essencialidade protege o produtor, o emprego no campo e a própria função social da propriedade rural. Por outro, pode ser usada de forma oportunista para blindagem patrimonial indevida, prejudicando a segurança jurídica e afastando investidores e credores do setor.

Sob o aspecto jurídico, a fundamentação mais comum para a declaração de essencialidade está no artigo 833, inciso V, do Código de Processo Civil, que trata da impenhorabilidade de bens necessários ou úteis ao exercício da profissão do devedor. Por analogia, muitos juízes têm estendido essa proteção a produtores rurais que demonstram, de maneira fundamentada, que determinados bens são indispensáveis à continuidade da produção. Também se invoca o princípio da função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da Constituição) e os objetivos da atividade econômica (art. 170 da Constituição), especialmente no contexto de políticas públicas voltadas ao fortalecimento do agronegócio.

Na prática, a declaração de essencialidade tem sido frequentemente utilizada em execuções movidas por bancos, fornecedores e parceiros comerciais. É também cada vez mais recorrente em recuperações judiciais de produtores rurais. Nesses casos, a declaração serve como argumento para afastar constrições e preservar o ciclo produtivo, mesmo diante de dívidas milionárias.

Contudo, os problemas começam a surgir quando esse instituto é utilizado de forma genérica, sem critério técnico, ou até mesmo como manobra defensiva artificial. Em diversos processos, declarações de essencialidade são apresentadas sem prova adequada, sem laudo agronômico, sem demonstração de que o bem é realmente indispensável, bastando a simples afirmação do devedor para que a penhora seja suspensa. O risco evidente é o de que essa prática desestabilize o regime das garantias, subverta a lógica contratual do crédito rural e leve a uma insegurança generalizada quanto à efetividade de garantias legalmente constituídas.

De fato, há decisões judiciais que afastam a execução até mesmo de bens dados em garantia real (como alienação fiduciária ou hipoteca), com base na essencialidade. Essa inversão preocupa o mercado e pode impactar negativamente a concessão de crédito para o setor agropecuário, que depende fortemente de financiamentos lastreados em garantias reais. O resultado prático é o aumento do custo do crédito, a retração de financiadores e a limitação de investimentos no campo, justamente o oposto do que se pretende com a proteção do produtor.

Por outro lado, seria injusto desconsiderar os aspectos positivos da declaração de essencialidade. Quando usada de forma legítima, com provas técnicas e análise responsável, ela cumpre importante função social: evita a destruição de cadeias produtivas, preserva empregos, protege a economia local e impede a perda irreversível de capacidade produtiva. Isso é particularmente relevante em regiões onde o produtor rural é a principal fonte de renda e movimentação econômica.

Portanto, o desafio atual do Direito do Agronegócio é equilibrar a proteção da atividade produtiva com a preservação da segurança jurídica. Não se trata de proibir a declaração de essencialidade, mas de regulamentá-la com critérios objetivos, como:

  • exigência de laudos técnicos ou pareceres agronômicos que comprovem a essencialidade do bem;
  • limitação temporal da proteção, com reavaliações periódicas;
  • respeito à hierarquia das garantias contratuais, sobretudo aquelas livremente pactuadas entre as partes;
  • possibilidade de contraditório qualificado, com manifestação prévia dos credores e análise criteriosa pelo Judiciário.

Em suma, a declaração de essencialidade de bens no campo é um instrumento legítimo, mas delicado, que pode proteger ou fragilizar o agronegócio, dependendo do uso que se faz dele. Seu crescimento desordenado impõe a necessidade urgente de reflexão, regulamentação e boas práticas. O advogado que atua no agro deve estar atento a esse movimento e contribuir para um uso equilibrado do instituto, sempre com responsabilidade técnica, respeito aos contratos e comprometimento com a perenidade da atividade rural.