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A Inteligência Artificial (IA) tem se popularizado e feito parte da rotina de indivíduos em todo o mundo. O Brasil está em quarto lugar no ranking dos países que mais usam o ChatGPT, atrás apenas dos Estados Unidos, Índia e Indonésia — segundo pesquisa feita pela empresa de marketing digital Semrush, divulgada neste ano.

Com o aumento do uso, usuários vem compartilhando nas redes sociais que estão usando a plataforma e outros bots liderados por IA para “sessões de terapia”. Com a saúde mental muitas vezes fragilizada, eles recorrem à soluções simples e baratas, o que acendeu o alerta nos especialistas.

Uma das que recorrreu à prática é a brasileira Sarah Costa. Em seu TikTok, a influenciadora afirmou que faz terapia pelo ChatGPT e ainda explicou como usa a ferramenta. Ela contou que treinou a plataforma para entender comandos de voz e pede respostas em português, para simular uma conversa.

“Você primeiro explica para ele que quer fazer uma sessão de terapia. Eu pedi para usar a TCC (Terapia Cognitivo Comportamental), que é a que eu mais gosto. Mas você pode pedir para ele te indicar qual a melhor abordagem para você, de acordo com a sua vida”, conta.

Ela também contou que deu autorização ao ChatGPT para lhe fazer perguntas, caso fosse ajudar na “sessão de terapia” e que gostaria que o atendimento fosse “o mais humanizado possível”. “Simplesmente fiz uma das melhores sessões de TCC da minha vida, vocês não têm noção”, disse.

“Num momento de desespero, numa crise de ansiedade na madrugada, eu sei que muita gente passa por isso, é uma super ajuda”, defende a influenciadora, que afirmou ter experimentado a técnica depois de uma noite de insônia: “Não tinha nada para fazer, resolvi testar.”

Já a criadora de conteúdo, Taylor Mazza, usa o ChatGPT como “terapeuta” há cerca de um ano e meio. Tudo começou depois dela se abrir para o chatbot sobre alguns problemas pessoais — ela acessa a plataforma de onde mora, na Califórnia, nos Estados Unidos. “Eu precisava de uma perspectiva mais objetiva sobre uma situação na minha vida, e o ChatGPT me ajudou totalmente a ter essa perspectiva panorâmica”, fala ela ao Dazzed. “A partir daí, sempre que algo acontecia na minha vida, eu ia para o ChatGPT.”

Mazza afirma que a IA fornece “opções para navegar em situações desconfortáveis” além de “palavras exatas para usar durante conflitos”. “Nas sessões de terapia [com humanos], você vai por cerca de uma hora, uma vez por semana, mas o ChatGPT é como meu melhor amigo para quando preciso de orientação ou incentivo”, alega.

O que dizem os especialistas de saúde mental?

 

O pesquisador e psicólogo Antônio Virgílio Bastos, membro e ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), afirma que existe uma tendência geral no crescimento da busca por cuidados em saúde mental, especialmente após a pandemia. “Nós identificamos dados epidemiológicos em todo o mundo indicando o aumento da prevalência de transtornos mentais comuns e uma maior conscientização acerca destes problemas como questões de saúde e merecem cuidado”, avalia, em entrevista a Marie Claire.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostraram que, antes da pandemia de COVID-19, cerca de 71% da população mundial com transtornos mentais não tinham acesso a tratamentos e acompanhamentos psicológicos. Apesar dos avanços na redução dos estigmas, “muito esforço ainda é necessário para conscientização por tratamentos apoiados por evidências científicas e ofertados por profissional especializado”, afirma o especialista.

“A ausência deste esclarecimento leva a busca por terapias alternativas e a busca por terapia por chatbot acompanha esse movimento. Além disso, existe toda uma aura de novidade e próprio sucesso do ponto de vista recreativo destas ferramentas”.

 

Ainda que a popularidade de métodos de terapia por plataformas de inteligência artificial pareça recente, tal recurso não é de hoje. “Temos notícias da aplicação de tecnologias para conversação com chatbots desde a década de 1960, com o exemplo da Eliza, projetada para simular um psicoterapeuta a partir de técnicas da psicoterapia humanista de Carl Rogers. Algumas pessoas acreditaram, na época, que estavam conversando com um psicólogo, apesar das limitações evidentes do sistema”, declara Pamela Carvalho, psicóloga mestranda em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e pesquisadora de Ciberpsicologia.

“Isso já mostra que o interesse por ferramentas tecnológicas nesse campo existe há muito tempo. No entanto, o que tem se intensificado nos dias atuais é a combinação de tecnologias avançadas e a maior visibilidade dessas ferramentas. O uso de IA está se expandindo como resposta a um fenômeno mais amplo: a busca por soluções rápidas para questões de saúde mental”, observa.

 

“Uma IA jamais poderá sentir aquilo que apenas o corpo humano sente”

 

Apesar da IA poder realmente apresentar retornos que se parecem com respostas inteligentes, “existem diversos limites em relação à tecnologia que hoje temos acesso”, diz o membro do CFP. “As principais revisões da área apontam para isso, especialmente quando buscam entender porque alguém deixa de usar uma dessas ferramentas. O relato comum é a frustração em relação ao uso da IA, envolvendo reclamações relativas a erros ou mesmo um padrão repetitivo que reflete esse limite que os modelos possuem”, completa.

Para o profissional, isso é “algo grave”, especialmente para quem busca ajuda pela primeira vez. “Pode ser que essa pessoa acredite, por engano, que a experiência com IA seja igual a experiência que ela teria fazendo psicoterapia. Uma das principais preocupações que temos está relacionada a isso”.

“Fora isso, os estudos que temos são muito preliminares, ainda que algumas pessoas possam relatar benefícios, estes são sempre a curto prazo e não se sustentam — o que pode gerar uma falsa impressão momentânea de eficácia e uma consequente frustração com o processo de procurar ajuda em um momento futuro”.

 

O especialista destaca que diversas qualidades únicas do processo psicoterapêutico emergem da relação entre o profissional de psicologia e a pessoa que pede ajuda. “Uma máquina será sempre uma máquina, por mais semelhante que as suas respostas se pareçam com a de um humano. Inclusive alguns tecnologistas acreditam que umas das profissões que dificilmente será substituída por uma IA é justamente a psicoterapia, uma vez que parte do processo envolve a dimensão humana e compartilhada do sofrimento”.

“Ser ouvido por alguém que potencialmente já passou ou poderia passar por algo semelhante ao que você vivencia faz diferença e pode inclusive ser uma dos motores do processo psicoterapêutico em algumas abordagens. Uma IA jamais poderá sentir aquilo que apenas o corpo humano sente e tão logo, por mais que se pareça empática, não será de maneira fundamental”, assegura.

Ele também reforça sobre a “humanidade compartilhada”, algo que é “essencial para a psicologia clínica”. “Nós podemos genuinamente nos conectar às dores de nossos pacientes e clientes, pois podemos em potencial passar por elas. Isso é um limite fundamental.”

A psicoterapia não se limita ao que é previsível ou mensurável. Em uma psicoterapia trabalhamos e acolhemos o imprevisível, subjetividade, aspectos conscientes e inconscientes, aquilo que escapa a padrões, todos elementos fundamentais da experiência humana. Como depende de modelos, a IA reforça caminhos já conhecidos, mas não acessa aquilo que pode ser transformador da experiência humana e além de não vivenciar emoções ou dilemas humanos. Impossibilitando qualquer vínculo genuíno”, frisa Carvalho.

A psicóloga também chama atenção para a questão da não-maleficência, princípio ético fundamental em saúde, que exige que a aplicação de qualquer ferramenta, incluindo IAs, não cause danos ao paciente. “O uso inadequado ou mal planejado de IA na psicoterapia pode resultar em práticas discriminatórias ou prejudiciais, comprometendo a saúde mental. Portanto, a responsabilidade de garantir que as tecnologias não causem mal é ainda mais crucial nesse contexto”.

Existe regulamentação sobre o uso de IA?

 

Atualmente, não há uma regulamentação aprovada específica sobre o uso de IAs para psicoterapia no Brasil ou mesmo para uso geral de inteligências artificiais. “O que temos são regulamentações abrangentes relacionadas a tecnologias, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Embora a LGPD regule o tratamento de dados pessoais, incluindo os dados de saúde, a aplicação de IA em psicoterapia não é regulamentada, o que levanta preocupações em relação à confidencialidade e aos riscos de vazamento de informações”, aponta Carvalho.

No contexto internacional, a regulamentação do uso de Inteligência Artificial em atendimentos terapêuticos ainda está em desenvolvimento, afirma a advogada especialista em Ética e Compliance na Saúde pelo Einsten, Nycolle Araújo Soares. Existem algumas normativas em relação a saúde e IA, como o relatório Ethics and Governance of Artificial Intelligence for Health (Ética e Governança da Inteligência Artificial para a Saúde), emitido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

“O documento aponta os benefícios trazidos pelo uso de IA, como aumentar a velocidade e precisão de diagnósticos, gestão dos sistemas de saúde e desenvolvimento de medicamentos, mas também ressalta os riscos aos pacientes, como coleta e uso antiético de dados de saúde e/ou preconceitos reproduzidos por algoritmos”.

 

Além disso, há a AI Act (Lei de Inteligência Artificial) da União Europeia, implementada em 2024, que também visa diretrizes para o uso ético e seguro da IA em diversos setores, incluindo a saúde. “Contudo, embora exista um pequeno avanço no desenvolvimento de regulamentações sobre o uso da Inteligência Artificial na saúde, o seu uso para atendimentos terapêuticos ainda é um tema a ser debatido, em contexto nacional e internacional”, declara a advogada.

“Tratamento psicológico ainda não está adequado às reais necessidades da população”

 

Bastos afirma que o acesso ao tratamento psicológico ainda não está adequado às reais necessidades da população. “Historicamente, a psicoterapia foi um serviço acessível apenas para pessoas de classe média e alta, porque era um serviço caro. Com o tempo, ela se democratizou, tornando-se mais acessível, especialmente nas redes de assistência social. Talvez isso não fosse o esperado, mas a psicoterapia também se tornou mais acessível nos planos de saúde, embora com alguns limites”.

“Hoje, especialmente com a crise e o aumento de problemas de saúde mental devido às rápidas mudanças, transformações, inseguranças e tensões no mundo, ainda não temos um atendimento suficiente ou adequado às necessidades de todas as pessoas”, afirma o especialista.

Os serviços de orientação e apoio psicológico, incluindo os fornecidos por inteligência artificial, acabam se tornando mais acessíveis de certo modo, por conta da carência que existe de profissionais com serviços disponíveis para toda a população. “Portanto, a questão do acesso ao tratamento psicológico é um problema que persiste, tanto com quanto sem o uso da inteligência artificial”.

“Nossa luta continua para garantir que todas as pessoas que necessitam de apoio psicológico para lidar com seu sofrimento e suas dificuldades tenham acesso a esse serviço, mas acredito que isso ainda está longe de acontecer, tanto no mundo real quanto no virtual”, finaliza.