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Segundo pescadores, a água está sendo desviada por um túnel subterrâneo que só é percebido ao se olhar de perto para uma mega represa construída em uma propriedade particular

Um vídeo que está circulando nas redes sociais, feito por um pescador da região do Rio Araguaia, na divisa dos municípios de Aruanã e Nova Crixás, expõe uma suposta situação grave de captação de água de forma irregular do rio e do Lago Rico, um lago formado de maneira natural pelas águas do rio. Segundo o pescador, a água está sendo desviada por um túnel subterrâneo que só é percebido ao se olhar de perto para uma mega represa construída em um resort de uma propriedade particular.

A reportagem procurou o prefeito de Aruanã, Hermano de Carvalho (UB), que afirmou que a fazenda é de propriedade do Sr. José Batista Sobrinho, fundador do Grupo JBS, mais conhecido como Zé Mineiro. Entretanto, o prefeito explica que não há desvio de água no local e que a água que abastece a represa é oriunda das enchentes. De acordo com ele, na época das chuvas, a água do rio sobe mais de cinco metros, e é exatamente essa água que escoa para a represa. Ainda conforme o prefeito, como o local onde está construída a represa já é uma região de alagamento, a represa se mantém cheia o ano todo.

Hermano Carvalho reitera que praticamente todos os grandes fazendeiros e agricultores da região utilizam essa técnica em suas propriedades, que serve para irrigação e consumo dos animais. “Conheço bem tudo isso aqui e sei que existe muito sensacionalismo em cima dessas questões. Pega um helicóptero e desce nessa fazenda e nas outras que você (repórter) vai comprovar tudo que estou te falando. Eles não estão retirando água de forma irregular de lugar nenhum”, assegura o prefeito.

Hermano Carvalho, no entanto, esclarece que está expondo a realidade dos fatos, mas não é amigo do proprietário da fazenda. “Não tenho procuração para defendê-lo, apenas estou expondo a realidade, o que é de verdade”, frisa.

Conforme o pescador, além do desmatamento à beira do rio, a captação de água desordenada na região contribui para a piora da seca em tempos de estiagens prolongadas. A reportagem conseguiu falar com o pescador, que pediu anonimato.

Ele informa que, infelizmente, esse é um problema que persiste há anos, e as autoridades parecem fingir que não sabem. “Essa é uma situação corriqueira aqui. Basta dar uma volta no rio que a gente percebe canos e pivôs retirando água do nosso rio o ano todo, tanto na época das chuvas quanto na seca. Cadê as autoridades que não fiscalizam e fingem não conhecer o problema?”, questiona.

A reportagem procurou o titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente de Goiás (Dema), Dr. Luziano Carvalho, que disse desconhecer o caso. Contudo, ele sublinhou que, por se tratar de uma provável retirada de água do Rio Araguaia, a fiscalização passa a ser federal, e não estadual.

Neste caso, a reportagem entrou em contato com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que ressaltou não haver pedido de outorga de direito de uso de recursos hídricos emitida para aquela região. No entanto, como existe a possibilidade de a água estar sendo retirada do Lago Rico e não do rio, a ANA pontuou que, assim sendo, a outorga é emitida pelo estado.

Contactada pela reportagem, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) enviou uma nota de esclarecimento. Veja na íntegra:

“A propósito das informações solicitadas pelo Jornal Opção, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável informa que enviou uma equipe para a região e que esses servidores já estão no local.

 A secretaria está verificando se as atividades econômicas estão em conformidade com a licença emitida pela Semad para a propriedade, que é de criação de gado em confinamento, e se está sendo captada água do lago que alcança o Rio Araguaia.

 A propriedade não tem outorga do estado para usar recursos hídricos de lagos da região, apenas a outorga da Agência Nacional de Águas (ANA) para captar água do Araguaia. A Semad terá novas informações quando a equipe retornar da operação de campo.”

A reportagem também procurou a superintendência da Polícia Federal em Goiás, cuja assessoria relatou que serão feitas diligências no local indicado pelo vídeo, e, se constatada alguma irregularidade, será elaborado um relatório, a partir do qual serão tomadas as medidas cabíveis.

Legislação

Para a advogada e professora especialista em Direito Ambiental, Luciana Lara, a fiscalização e prevenção desse tipo de crime é falha. “Os principais desafios encontrados no que diz respeito à retirada de água irregular dos mananciais no estado de Goiás são, principalmente, pela falha na fiscalização exercida pelos órgãos competentes. A autuação e a fiscalização são insuficientes”, observa.

A advogada explica que existem duas importantes normatizações que versam sobre a proteção das águas, como a Lei Federal 9.433/1997, que regulamentou na Constituição Federal o artigo 21, inciso 19, que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos e da criação do sistema de gerenciamento desses recursos.

No âmbito estadual, a advogada enfatiza a Lei 13.123/1997, que estabelece normas de orientação à Política Estadual de recursos Hídricos, bem como ao sistema integrado de gerenciamento de recursos hídricos.

De acordo com a especialista, aqueles que fazem essa retirada indevida de águas dos mananciais estão sujeitos às normatizações que versam sobre as penalidades e infrações administrativas em atos lesivos ao meio ambiente. “Temos normatizado, no âmbito federal, a Lei 9.605/1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”, pontua.

Para a advogada, a responsabilização para quem comete atos lesivos ao meio ambiente é bem amparada pela Constituição Federal e pelo triplo de responsabilidades em matéria ambiental. “Existem a responsabilidade civil ambiental, a responsabilidade penal ambiental e a responsabilidade administrativa ambiental. Ou seja, tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica poderão responder dentro dessas três esferas de responsabilização”, esclarece.

Bacia Amazônica

O Rio Araguaia, um dos principais rios da bacia amazônica, tem experimentado uma diminuição acentuada em seu fluxo. A seca prolongada tem reduzido os níveis das águas, afetando o ecossistema aquático e as espécies que nele habitam. O Araguaia, que historicamente forneceu um habitat rico para peixes e outras formas de vida aquática, enfrenta agora desafios severos com a diminuição da disponibilidade de água.

A retirada ilegal de água dos rios é um problema ambiental significativo que afeta ecossistemas e comunidades ao redor do mundo. Quando indivíduos ou empresas extraem água de forma não autorizada, comprometem o equilíbrio dos cursos d’água e prejudicam a biodiversidade local.

A redução no fluxo dos rios pode levar ao desaparecimento de habitats aquáticos essenciais para várias espécies de fauna e flora, alterando a dinâmica ecológica e colocando em risco a sobrevivência de muitos organismos.

Além dos impactos ecológicos, a retirada ilegal de água pode afetar gravemente o abastecimento de água para as comunidades que dependem desses rios para suas necessidades diárias. Em muitas regiões, especialmente em áreas vulneráveis, a água é um recurso escasso, e a exploração não regulamentada pode levar a crises hídricas, prejudicando a qualidade de vida das pessoas.

A luta contra a retirada ilegal de água requer a implementação de políticas rigorosas e fiscalização eficaz. Medidas como o monitoramento constante dos corpos d’água, o estabelecimento de penalidades severas para infrações e a promoção de alternativas sustentáveis são essenciais para proteger os recursos hídricos e garantir a sua disponibilidade para as gerações futuras.

A competição por recursos hídricos também pode exacerbar conflitos sociais e econômicos entre diferentes usuários e regiões. A conscientização pública também desempenha um papel crucial, ajudando a fomentar uma cultura de respeito e responsabilidade em relação aos recursos naturais.

Intervenção humana

De acordo com o geógrafo Manuel Eduardo Ferreira, mestre em Processamento de Dados e Análise Ambiental e doutor em Ciências Ambientais, que é professor na Universidade Federal de Goiás (UFG – IESA/Lapig), a principal causa da seca dos rios, incluindo o Rio Araguaia, é o desmatamento. Ele explica que a substituição da vegetação natural por pastagens e áreas de cultivo, uma prática que ocorre há décadas, tem várias consequências. No caso da água, essa modificação afeta diretamente a perenidade dos rios, expondo as nascentes, que perdem suas funções e acabam secando.

O professor destaca que a água do subsolo é fundamental para alimentar os rios. Durante a seca, com o nível do lençol freático reduzido, os rios podem deixar de existir. “A seca é o preço que se paga pela transformação da paisagem natural”, afirma ele. Além disso, as mudanças climáticas também impactam o abastecimento do lençol freático. “Pouca chuva e chuvas irregulares – por exemplo, o que deveria chover em dois ou três meses acontece em apenas dois dias – juntamente com o calor mais intenso, que provoca a evaporação da água, alteram o sistema hídrico”, explica.

Segundo o professor, a seca dos mananciais tem um efeito direto na biodiversidade. Ele cita como exemplo as áreas do cerrado que estão se tornando desérticas ou semiáridas devido às mudanças climáticas. “Em resumo, há mais água saindo do sistema do que entrando”, observa.

Além disso, o professor aponta que as intervenções humanas, como o represamento dos rios para irrigação, geração de energia e agricultura, agravam o problema. “Todas as modificações no entorno dos sistemas hidrográficos comprometem o sistema como um todo”, enfatiza. Ele também sugere que os agricultores desenvolvam métodos sustentáveis, utilizando técnicas agrícolas que permitam o uso responsável da água.

O professor destaca que as comunidades locais que dependem da pesca para alimentação e subsistência sofrem com a seca, que afeta a reprodução dos peixes e torna a água para a agricultura cada vez mais escassa. Embora a reversão desse processo seja difícil, ele sugere a adoção de estratégias para regenerar a vegetação e o solo, como o reflorestamento, para reconstruir a paisagem.

Ele também alerta sobre a importância do uso de tecnologias para o armazenamento de água, especialmente nas zonas rurais, a fim de permitir o uso racional da água durante períodos de seca prolongada. O professor enfatiza que a educação ambiental tem um impacto positivo na preservação dos ambientes naturais, e deve começar com as crianças e continuar em todas as etapas do ensino.

No Dia Nacional do Cerrado: o Futuro do Bioma Está em Risco

Na última quarta-feira, 11, celebrou-se o Dia Nacional do Cerrado, mas especialistas alertam que a data não traz boas notícias. O bioma está enfrentando o ano mais devastador em queimadas desde 2012, com cerca de 11 milhões de hectares consumidos pelas chamas até setembro, conforme dados do Lasa/UFRJ (Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

A seca generalizada que atinge o Brasil tem reduzido os níveis de água nas bacias hidrográficas do país. Segundo Adriana Cuartas, hidróloga do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), “Com a destruição da Amazônia e do Cerrado, e as secas nos últimos anos associadas às mudanças climáticas, a ‘caixa d’água do Brasil’ está se esvaziando.”

Conhecido como o “coração das águas”, o Cerrado é vital para a preservação de nascentes que abastecem importantes rios como o São Francisco, Araguaia, Tocantins, Paraná (fundamental para a geração de energia elétrica) e Paraguai, que por sua vez alimenta as planícies alagadas do Pantanal. A degradação deste bioma compromete não apenas a biodiversidade, mas também a segurança hídrica de vastas regiões.

O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) destacou a devastação do Cerrado, com 88 milhões de hectares queimados entre 1985 e 2023. Esta área representa 43% de toda a extensão do bioma e supera o território de países como Chile e Turquia.

O relatório revela que, anualmente, as chamas consomem uma média de 9,5 milhões de hectares do Cerrado, taxa que ultrapassa os índices da Amazônia, onde o fogo atinge 7,1 milhões de hectares por ano. A comparação ressalta a gravidade da situação no Cerrado, um bioma crucial para a biodiversidade e o abastecimento hídrico do Brasil.

A crise hídrica também se intensifica. Desde 1985, a área de superfície de água natural no Cerrado foi reduzida em 53%, totalizando 696 mil hectares em 2023. Apesar de ser a fonte de nove das doze bacias hidrográficas brasileiras e abrigar grandes aquíferos como o Guarani, Bambuí e Urucuia, a capacidade de retenção de água do Cerrado está comprometida pela expansão agrícola e mudanças climáticas.