Por Filipe Denki
Entrou em vigor no mês de julho a Lei nº 14.181/21 que altera o Código do Consumidor e estabelece uma série de medidas para tratar o chamado “superendividamento”.
Segundo levantamento realizado em 2020 pela Confederação Nacional do Comércio, o número de famílias endividadas por cartões de crédito ultrapassa o percentual de 66%. Para além disso, o endividamento do brasileiro envolve dívidas com carnês de loja, financiamento de carro, financiamento de imóvel e crédito pessoal, sem mencionar o cheque especial. Em junho desse ano o número de famílias endividadas no chegou a 69,7%.
No Brasil já existia em nossa legislação a insolvência civil que se baseia na execução contra devedor insolvente, o qual o patrimônio total não é suficiente para honrar com suas dívidas. Esse instituto é equiparado a falência, mas de pessoa física, contudo, faltava no país, uma legislação que abordasse sobre a prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores e um instrumento de renegociação de suas dívidas semelhante à recuperação judicial.
Nos Estados Unidos o modelo de insolvência (personal bankruptcy) tem como objetivo possibilitar ao devedor de boa-fé quitar as dívidas, com exoneração do passivo restante, de forma a garantir-lhe o chamado fresh start (recomeço rápido), gerando tempo para que ele se reorganize financeiramente.
A Lei do Superendividamento entende por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial.
O termo mínimo existencial está consagrado na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor e é, talvez, a principal razão para justificar elaboração da Lei do Superendividamento. Isso porque o excesso de dívidas pode comprometer o custeio das necessidades básicas do consumidor, bem como, colocá-lo à margem da sociedade, tendo em vista que pode culminar na “negativação” de seu nome, o que impede seu acesso a bens de consumos básicos, além de realização de diversos atos de consumo. Até mesmo o acesso ao trabalho pode ser impossibilitado, tendo em vista alguns requisitos exigidos para determinadas categorias profissionais.
Entre as novas medidas, consumidores terão direito a uma espécie de “recuperação judicial” para renegociarem as dívidas com todos os credores ao mesmo tempo, englobando nesta recuperação quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
De forma bem simplificada, o consumidor em estado de superendividamento, caracterizado pela soma simples de suas dívidas e subtração de sua renda, que resulta em recursos financeiros insuficientes para a manutenção de sua dignidade humana, ou seja, do mínimo existencial, poderá, através de um advogado, requerer ao Juiz a instauração de um processo de repactuação de dívidas, obrigando-se a uma audiência conciliatória com a presença de todos os credores das dívidas vencidas e aquelas que ainda irão vencer.
Nessa audiência o consumidor apresenta uma proposta de plano de pagamento das dívidas em até 5 (cinco) anos, preservando seu mínimo existencial. Havendo êxito na conciliação e aceito o plano apresentado, o juiz homologa a transação, que passa a ter eficácia executiva judicial com força de coisa julgada.
Caso contrário, ainda a pedido do consumidor, o juiz instaurará o processo de superendividamento para revisão e integração dos contratos, bem como para repactuação das dívidas apresentadas pelo consumidor mediante plano judicial compulsório. Neste cenário, a decisão e elaboração do plano de pagamento passa a ser do juiz e não mais das partes.
No processo de superendividamento, o juiz poderá nomear um administrador, sem que isso não onere as partes, para elaborar o plano compulsório, desde que assegure aos credores, no mínimo, o valor da dívida principal devida, corrigida por indicies oficiais de preço, garantindo a primeira parcela no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, e o restante em parcelas mensais iguais e sucessivas.
Importante também deixar claro que a Lei do Superendividamento, prevê ainda procedimento administrativo, mediado pelo poder público através dos órgãos que compõem o sistema nacional de defesa do consumidor para tentativa de repactuação das dívidas, o que, se alcançado, constitui título executivo extrajudicial.
Cabe salientar que o plano de renegociação não significa insolvência civil, ou seja, não será declarado que o consumidor deve mais do que o patrimônio que possui, tendo em vista que ele permanece com seu poder e capacidade de compra.
Vale destacar ainda, que o consumidor só poderá requisitar novo plano de repactuação de dívidas após 2 (dois) anos da liquidação dos débitos repactuados no plano anterior, o que visa desestimular a utilização do mecanismo de forma inconsequente.
Assim, como a nova lei o consumidor pessoa física tem a sua disposição um instrumento de amparo ao superendividamento que pode ser requerido tanto na via administrativa como na via judicial. Sendo que, na via judicial, somente se frustrada a tentativa de conciliação entre as partes, passa-se à um plano compulsório, onde o juiz (terceiro imparcial), será o responsável por fixar os termos do plano de repactuação das dívidas.
A nova lei visa dar, portanto, aos consumidores brasileiros superendividados, uma nova chance de se reerguer financeiramente, sem, contudo, deixar de arcar com os compromissos financeiros já assumidos, se mostrando um mecanismo eficiente para àqueles que de boa-fé se encontram afundados em dívidas.
Filipe Denki – Sócio do Lara Martins Advogados. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito e Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO. Especialista em Direito Empresarial e Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera. Formação Executiva em Turnaround Management pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ex-Presidente da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência da OAB/GO (triênio 2019/2021). Diretor da Comissão de Recuperação de Empresas e Falência do Conselho Federal da OAB (triênio 2022/2024). Diretor do Instituto Brasileiro de Direito da Empresa – IBDE. Membro dos institutos de insolvência empresarial TMA, IBAJUD, INSOL e IBR. Professor de Direito da Insolvência na Escola Superior da Advocacia – OAB/GO e na Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás. Coordenador do Curso de Formação de Administradores Judiciais da ESMEG. Árbitro da Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial e Industrial do Estado de Goiás – CAM/ACIEG e do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem – CBMA. Árbitro e Coordenador do Núcleo de Reestruturação e Insolvência Empresarial da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada – CAMES. Membro do Comitê de M&A e Reestruturação de Empresas da Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial Brasil – CAMARB. Palestrante em diversos eventos e autor de artigos e livros sobre a área de insolvência.