O caso de duas estudantes de medicina que divulgaram em vídeo detalhes sobre uma paciente que passou por múltiplos transplantes ganhou repercussão nacional e abriu espaço para um debate necessário sobre os limites éticos no uso de dados de saúde em redes sociais.
A paciente em questão, Vitória Chaves da Silva, de 26 anos, foi submetida a três transplantes de coração e um de rim ao longo da vida. Mesmo sem mencionar seu nome no vídeo, as estudantes detalharam o caso clínico de maneira que tornou possível sua identificação, especialmente por se tratar de um caso raro, único no Instituto do Coração de São Paulo (Incor), onde os procedimentos foram realizados. Dias após a publicação do vídeo, a paciente faleceu em decorrência de complicações do transplante.
Ética, sigilo e identificação indireta
Em entrevista ao programa Fala Minas, a advogada Nycolle Soares, sócia e CEO do Lara Martins Advogados, especialista em Direito da Saúde, abordou os desdobramentos jurídicos e éticos da situação. Ela explica que, mesmo quando não há citação nominal, a legislação exige que as informações de saúde sejam anonimizadas ou seja, não devem permitir qualquer forma de identificação da pessoa envolvida.
“No caso da Vitória, o fato de o transplante ter sido raro e vinculado a uma instituição específica tornou possível identificar quem era a paciente. Isso caracteriza uma violação ao direito à privacidade e ao sigilo médico”, pontua a advogada.
Finalidade do uso da informação importa
Nycolle reforça que dados de saúde só podem ser compartilhados com finalidade ética e educativa, como em pesquisas científicas, materiais de conscientização ou campanhas de saúde pública — e jamais de forma banalizada ou com viés humorístico, como ocorreu no vídeo publicado. “Transformar situações gravíssimas em conteúdo de entretenimento para redes sociais ultrapassa a barreira da ética e compromete não apenas o respeito à pessoa envolvida, mas também o próprio sistema de saúde”, alerta.
A advogada destaca ainda que o Brasil possui um dos maiores e mais respeitados programas públicos de transplantes do mundo, referência internacional em organização, critérios clínicos e acesso gratuito. “Ao banalizar um caso como esse, colocam-se em dúvida não só os procedimentos realizados, mas o trabalho sério e criterioso de equipes médicas inteiras, além de enfraquecer a credibilidade de um sistema que salva milhares de vidas todos os anos”, afirma.
Dano pós-morte e precedentes jurídicos
Nycolle também chamou atenção para o impacto do chamado dano pós-mortem, ou seja, o sofrimento causado aos familiares da vítima após a exposição pública de sua imagem ou história clínica. “Casos como o do cantor Cristiano Araújo e da cantora Marília Mendonça, que tiveram vídeos vazados indevidamente após suas mortes, evidenciam o sofrimento causado às famílias, mesmo após o falecimento do ente querido”, relembra.
Esse tipo de situação, segundo ela, fere a dignidade não só da pessoa falecida, mas também de seus entes próximos, e pode gerar responsabilidade civil e criminal para os envolvidos.
O vídeo e suas consequências legais
No vídeo gravado pelas estudantes, além da exposição do histórico clínico, uma delas chega a afirmar que a paciente “não tomou os remédios que precisava tomar”, sugerindo que a necessidade de um novo transplante seria consequência de negligência da própria paciente — algo que a família contesta veementemente, afirmando que Vitória sempre seguiu rigorosamente as orientações médicas.
A repercussão do caso levou a família a registrar boletim de ocorrência, e a situação passou a ser investigada pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que instaurou inquérito policial por possível prática de injúria. O Ministério Público também acompanha o caso, que foi distribuído para o 4º promotor de justiça de direitos humanos da capital paulista.
Em nota, a assessoria jurídica das estudantes afirmou que a publicação teve como objetivo “expressar surpresa diante de um caso clínico mencionado no ambiente de estágio” e alegou que se tratava de uma “reflexão espontânea”. No entanto, a advogada reforça que a responsabilidade ética já se aplica durante a formação acadêmica: “Mesmo sendo estudantes, a conduta deve seguir os princípios éticos da profissão que escolheram seguir”.
O que diz a legislação?
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) estabelece que dados sensíveis, como informações de saúde, devem ser tratados com rigor, mesmo quando não diretamente identificáveis. Quando a combinação de dados — como instituição, idade, tipo de tratamento e raridade do caso — permite deduzir a identidade de uma pessoa, há violação da norma.
Além disso, a legislação civil brasileira garante o direito à imagem e à privacidade, independentemente da pessoa estar viva ou não, o que reforça a base para ações judiciais em casos como esse.
Um alerta para a sociedade e para futuros profissionais
Nycolle finaliza o alerta com uma reflexão: “Ao transformar nosso cotidiano em conteúdo para redes sociais, corremos o risco de banalizar experiências humanas profundas. Situações como essa não deveriam acontecer. E quando acontecem, precisam ser enfrentadas com seriedade — não só pelas consequências legais, mas pelo impacto ético e humano envolvido”.
Confira a entrevista completa:
Advogada. Sócia e Gestora Jurídica do Lara Martins Advogados. MBA em Direito Médico e Proteção Jurídica Aplicada a Saúde. Pós-Graduada em Direito Civil e Processo Civil. Analista de Finanças pela FGV. Especialista em Ética e Compliance na Saúde pelo Einstein. Presidente do Instituto Goiano de Direito Digital – IGDD/GO


